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O último aceno da aura

Na expressão fugaz de um rosto humano, a aura acena das primeiras fotografias pela última vez.

(Walter Benjamin)


A modelo é cristalizada pelo primeiro processo fotográfico do mundo, despida para um ritual quase alquímico que é a Daguerreotipia. Enquanto isso, no século XXI, usamos a repetição, a cópia da cópia, o efêmero, mesmo que o preço seja a alienação dos processos fotográficos.


Um daguerreótipo não é reprodutível. Ainda que se tente uma foto digital do mesmo, a reprodução é feita em outra mídia, comprometendo a nitidez original incontestável, além da perda de sua aura. Nasce daí uma reflexão sobre o excesso de imagens no mundo contemporâneo, buscando desnudar as verdades da fotografia que se encontram entre a luz do sol e as sombras da caverna.


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Em 19 de agosto de 1839, o governo francês anunciava para o mundo a invenção da Daguerreotipia (ou o primeiro processo fotográfico oficial da história).


O inventor, Luis Daguerre, provou para o mundo que era possível fixar imagens num suporte, usando apenas luz! Todavia, apesar de ser um processo fotográfico (aquilo que faz uma imagem ser gravada apenas com foto/luz), o daguerreótipo não era reprotutível – não existe uma matriz da onde podem surgir inúmeras cópias, como acontece com o negativo ou arquivo digital. Um daguerreótipo é único.



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Em 2013, tive a experiência de realizar meu primeiro daguerreótipo bem sucedido, com o ensinamento e todo apoio do mestre Francisco da Costa, em seu Studio Século XIX. Foram dias de imersão para o aprendizado do processo, desde o polimento da chapa de cobre até a revelação da imagem.


Desde que eu soube da possibilidade de aprender Daguerreotipia, que minha intenção fora a realização de uma foto de Nu. A modelo, muito antes de se tornar uma grande amiga, se mostrou aberta à possibilidade de posar nua. A nudez me parecia atemporal. No futuro, quando o paspatur se decompor com a legenda, a foto não será facilmente datável.


Segurei meu 'dag' (como passamos a chamar um daguerreótipo) por dois anos. Mostrei apenas para os amigos mais próximos e para alguns alunos de fotografia, até que me apareceu a oportunidade de expor num contexto satisftório, que pudesse dialogar com a minha obra. Resolvi, então, não expor apenas o dag, mas a imagem e seu duplo.


A alegoria da aura, de Benjamin, já é conhecida entre os fotógrafos. Todo e qualquer processo fotográfico parte de um negativo, de um positivo ou de um arquivo digital, que permite quase infinitas cópias da mesma imagem. Exceto um daguerreótipo que, mesmo se reproduzido por outro processo (como na obra em anexo), nunca irá conter uma imagem espelhada em negativo e positivo, muito menos a nitidez de um equivalente ISO abaixo de 0,01. O dag não trabalha com grãos, mas com banho de prata.


Existe nesse processo um valor de culto, ritualístico, que foi perdido com o excesso de cópias fotográficas por necessidade da industria cultural. Não se faz um daguerreótipo com um click. É preciso um tempo bem longo de exposição à luz do sol para que a prata seja sensibilizada; é preciso tempo e paciência; a modelo precisa ficar parada, sem piscar, sem respirar. Não existe instante fotográfico.


A realização de um daguerreótipo se aproxima de uma experiência mágica. Ainda que a Alquimia ou a Astrologia já não estivessem na grade curricular das universidades (exceto como história e proto-ciência), no século XIX ainda se utilizava claves herméticas da antiga tradição. "Diversos termos utilizados pela fotografia – a câmera escura, a placa sensível, o banho revelador – derivam do vocabulário da magia." (Jean Clair) – É curioso pensar que é com mercúrio que se revela a imagem do "espelho com memória", como foram chamadas as primeiras fotografias. Mercúrio, o deus mensageiro greco-romano.


O dag (e seu duplo digital impresso) buscam mostrar esse último aceno da aura de que Walter Benjamin trata no ensaio A obra de arte na época de sua repodutibilidade técnica, além de trazer a possibilidade de resgatar aquele tempo perdido e desacelerado de contemplação.

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