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Ensaio sobre a legenda de uma fotografia triste


Fotografei esta senhora para o meu Instagram (@vnaine), em 2012. Ela estava com o olhar perdido, de papo com uma moça mais jovem. Me posicionei e enquadrei rapidamente, mas com algum cuidado (pois não queria perder a cena). No disparo (sem flash e em silêncio) a senhora olhou para a câmera do meu iPhone. Quando levantei a cabeça, ela estava olhando para mim. Não tenho certeza se reparou que eu estava batendo uma foto sua.

O fato de saber que eu existia (e estava ali naquele exato momento com uma câmera) me entristece ainda mais do que o instante em si. Me senti invadindo a sua alma, congelando um instante e eternizando-o, sem a sua complacência. Acho que todo fotógrafo, algumas vezes na vida, gostaria de ter o anel de Gyges* para ficar invisível.

Por outro lado, me faz lembrar de uma prática que faço desde a infância: quando passo por um mendigo ou alguém que julgo estar com dificuldades, ao invés de ignorar (diante da minha impotência) eu olho sem ameaçar e fecho os olhos firmemente. Assim, capto aquela imagem como uma fotografia mental, para nunca mais esquecer. O fotógrafo Minor White disse certa vez: “Estou sempre fotografando tudo mentalmente, como um exercício.” Ao contrário dele, nunca o fiz por exercício fotográfico, mas para nunca esquecer o meu acostumar com a dor alheia. Como diz Susan Sontag, o excesso anestesia!

Diane Arbus (1923-1971) foi esposa de Allan Arbus, aclamado fotógrafo de moda. Cansada daquele universo de glamour, resolveu fotografar “o outro lado” de NY: travestis, doentes mentais, gigantes, siameses... Ela fotografava as suas vidas como eram, mesmo quando tristes; conseguia passar numa foto aquela verdade, usando o flash (mesmo com a luz do dia), para destacar do mundo a excentricidade daquelas pessoas. Elas sempre posavam para Diane, pois confiavam na fotógrafa… ao contrário da minha relação com a senhora triste.

Me pergunto se em algum dia a senhora souber da minha foto (e esse dia se aproxima a partir de o momento em que publico este ensaio), se ficaria frustrada, ainda mais triste do que parece na foto; se iria me censurar, brigar comigo, me chamar de moleque. Ou será que iria aprovar? – Às vezes, retratar momentos difíceis são importantes para que a consciência retome-os para uma auto-anamnese (assim como acredito ingenuamente ter sido para a maioria daqueles que posavam para Diane).

A senhora da foto realmente estava triste? Ela parece triste. Visto que isso é uma imago mundi (aparência; imagem do mundo), assim a intitulei: Senhora Triste – uma dramatização do real (ou a construção do que é real?). Eu não dei nome à foto quando a postei no Instagram. Mas, para que ela chegasse mais longe, usei algumas marcações, como #sad ou #unhappy. Por quê? Quem sou eu, além de autor da imagem? Apenas registrei um momento, com um enquadramento específico. Ao intitular, estou dando outra força para os olhares: tanto ao meu olhar (enquanto fotógrafo), quanto ao do espectador e ao da própria senhora. Para quem não a conhece (como eu) é realmente uma senhora com um eterno olhar triste – eterno na fotografia, de um único clique.

Muitas vezes acho que tenho um vínculo energético com as pessoas que fotografo na rua, sem que posem. Certa vez, saí de um banco em São Paulo. Na porta, havia um mendigo: senhor de idade, com uma roupa exótica, barba enorme e grisalha, acompanhando de um cãozinho preto. É uma pena (por um lado) que eu não possa mostrar uma foto desse senhor, pois ao me ver, começou a brigar comigo e a ameaçar me bater, dizendo para eu fotografar a “PQP!” (Eu estava com o iPhone, distante, discreto. Como ele me viu?) Me senti violentado ao tentar violentá-lo! (De certa forma, como diz Roland Barthes, as câmeras são análogas às armas! – O flash já foi estouro de pólvora; o telêmetro foi criado precisão de mísseis; e nosso botão faz disparar uma foto!). É curioso como pode haver um mendigo tão bonito e excêntrico, sem o desejo de ser fotogênico. Hoje em dia, talvez a maioria das pessoas cultive a própria estética visando ser bem fotografado. Eu deveria ter perguntado? Ele teria posado para mim? E a senhora?

A imagem é definida como algo que pode ser roubado de seu proprietário; assim, Antonioni foi recriminado por “fazer tomadas à força, contra a vontade do povo [chinês]”, como um “ladrão”.**

Como diz Susan Sontag, a força das legendas faz uma foto (principalmente jornalística) falar. Quando as arrancamos da foto, ela se torna arte pela sua força de abstração. Ao contrário, fiz da minha foto uma legenda; e da legenda este ensaio, pois julgo de extrema urgência essa filosofia da imagem.

Enfim...

______ * Alegoria que Platão nos conta em A República (mesmo livro onde está contida a Alegoria da Caverna), sobre um anel que deixa seu usuário invisível. ** SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2004. p.188

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